Skip to content

Categoria: Conto

A mulher de braços fortes

A mulher com braços largos põe-se em pé lá pelas 4 da matina. Seu corpo ainda sentido da labuta do dia que se pos, acorda. Levanta-se e alimenta sua cria.
Os mesmos braços fortes lá pelas 6 do mesmo dia estão agarrados nas grades do metrô. Nesse ato cotidiano é que ela encontra seu lugar, no meio de corpos que lotam seu entorno, ela vive o seu espaço. Na ida e na volta são seus braços grossos que impõe seu espaço.
Trabalha, cria, sustenta, faz… Tão acostumada a ser guerreira, tão acostumada a despir-se de seu seio. Fez amazonas de si mesma. E há de morrer assim, com seus braços encorpados a lutar por si.
1 Comment

O Elevador

Ela, presa em cinco metros quadrados. O escuro e seis vultos de ombros largos. Então, como quem esperava pela dor, ela recebe o amor. Um beijo que lhe rodou a cabeça e lhe deixou as pastas caírem no chão.

Seu coração acelerado a fazia tremer levemente, mas no escuro ninguém se denunciava, nem mesmo seu tremor. Uma vida seca era exposta a cada segundo que ela permanecia presa ali. Paredes de metais não são naturais, pensava. Quanto tempo pudera viver assim? Quem secretamente lhe desejava? E por que de repente se sentia diante do liquido viscoso de uma barata como em seu livro favorito?

A dúvida, de repente só isso existia. Cinco metros quadrados se transformaram em centímetros quadrados. Sufocava. E como se seu peito abrisse e se enchesse de ar a luz se acendeu. A porta se abriu. Seis homens saíram. E ela, pois ao chão recolhendo os papeis caídos como Terezinha a espera de quem lhe de a mão.

1 Comment

Assim que os pássaros cantarem

Os olhos se abrem. Vejo através da cortina esvoaçante os raios do sol que penetravam meu quarto. A primavera toma força e enfim os pássaros cantam para me despertar, assim como quando eu era criança e despertava na cama de minha avó.
Nessa lembrança um cheiro familiar de café me toma as narinas. Esperança e incredulidade. Levanto de um salto e escuto o tilintar das panelas no fogo. A porta do quarto está fechada exatamente como quando minha avó se levantava mais cedo. Ela fechava a porta para não me despertar. Os pássaros, o cheiro do café, a porta fechada e o dia que se fazia sábado.
A noite tinha sido quente e meu corpo ainda suado não parava de produzir o néctar. Da testa minavam gotas de algum sentimento sem nome. Era preciso abrir a porta, mas a que preço… Abrir e descobrir que ela não está mais lá ou não abrir e por em dúvida a minha sanidade por uma vida inteira. Respiro.
Esse ensaio sobre a sanidade fez minha testa em cascata, as gotas escorriam pelo peito que subia e descia como em um tango, devido ao ar que só agora eu percebia existir. A porta à minha frente, sem perceber a mão posta sobre a maçaneta gira.
Andei, andei sem ver mais nada, só parei ao chegar à porta da cozinha. Por um momento o choque, o susto. Suas costas nuas também suavam, a samba canção folgada salientava as curvas pélvicas que tanto me hipnotizavam, ele estava lá, em pé na frente do fogão. Ela se fora.
4 Comments

Ele se chamava Daniel

Ele se chamava Daniel. Logo que nasceu, sua mãe trocou de alma com ele, deixando um marido e mais dois filhos. Seu pai era militar, tinha nome de militar, José era o nome dele. Os irmãos Antonio e Miguel eram um caso à parte. Tinham um sobrenome tipicamente brasileiro, da Silva. Viveu durante nove anos num regime militar, logicamente dentro de um quartel. Exatamente no seu aniversário de nove anos seu pai resolveu se aposentar e se mudar. E foi ali, numa vila tradicional de São Paulo, que ele viu aquilo pela primeira vez; ele já tinha visto fuzis, revólveres, metralhadoras, bazucas, mas aquilo nunca.
“Tinha formato humano, mas em miniatura, algumas lãs pareciam formar uma espécie de cabelo, aquilo que talvez fossem os olhos eu conhecia, botões de camisa, estampava um sorriso magnético com buchechas rosadas, usava uns trapos como vestimenta, aquilo eu já tinha visto, as filhas dos generais usavam aquilo, pra ser sincero os trapos e os vestidos eram bem parecidos”.
Era uma boneca, algo comum, mas que não fazia parte da sua realidade. Talvez por isso lhe chamou tanta atenção. Curioso como sempre, nem esperou pra pegar aquilo. Naqueles nove anos ele imaginava que tinha sido a pior idéia que ele já teve na vida.
“Uma semana depois da boneca, meu corpo ainda doía, eu ainda tinha marcas no meu corpo, mas papai sabia muito bem como deixar marcas sem que os outros vissem. Diria mais, aqueles olhos sem brilhos… o que ele fez comigo não deve ter sido nem um terço do que ele era capaz, por isso no fundo eu me sinto grato ao papai”.
José já era capitão há muito tempo, Miguel e Antonio pareciam idolatrar a carreira militar do pai. Miguel tinha dezessete, estava prestes e ansioso para entrar no exército, Antonio tinha catorze, capitão de tiro ao alvo júnior e o melhor no “polícia e ladrão”. Ele, Daniel, com os seus nove anos, sabia atirar e carregar uma arma tão rápido quanto Miguel e corria como o vento. Esses foram os brinquedos desses irmãos. Essa foi a infância deles. Moravam numa pequena vila no bairro da penha em São Paulo.
* “Ele se chamava Daniel” – Post Esbolço – Texto de Leco Vilela.
7 Comments