Como posso eu abrir minha boca pra contar as mazelas do mundo quando o mundo tem sido tão bom comigo?
Tô vivo, diferente de Marielle.
Não sou negro e nem mulher, como Djamila.
Sou um pessoa com um corpo cis tradicional, diferente de Leandra.
Então o que eu posso escrever de tão relevante assim?
Por que minha voz merece ser ouvida mais do que as pessoas que realmente precisam ser compreendidas?
Que voz é essa e o que ela quer dizer?
A única coisa que eu sei
é que eu preciso que minhas letras possam ir além da mediocridade.
Como garantir que minha vivência construa narrativas complexas, epopeias sólidas?
Sou apenas mais um rapaz indo-afro-latino americano.
E apresento em mim toda complexidade dessa mistura de ancestralidade.
Quando rezo é torre de babel
É arcanjo conversando com orixá
É caboclo ensinando cavalo a rodar.
Qual métrica poética utilizar?
Qual cadência seguir? Qual ritmo dar?
Como discorrer na folha branca o que trava minha garganta?
Apertada e áspera,
ácido dissolvendo a pouca noção de gramática que me resta.
Já tentei espalhar palavras de amor e gratidão na esperança de ver fertilizar a consciência no terreno quase infértil que se mostra a humanidade desde a nossa criação.
Mas ainda assim não achei o tom.
Percebe, eu achar que o mundo foi bom comigo mesmo tendo quase morrido,
sido agredido
pulado córrego ao invés de corda.
Mas ainda assim entender o meu lugar na hora de falar
E ter que ouvir você dizer que não sabe certo como se comportar na presença de um corpo que é diferente do seu, que te causa estranheza.
O que me causa estranheza
é fome e pobreza
num país que o que mais é chão
Terra batida ou não.
Evoluímos, sem dúvida,
Mas ainda estamos nos atropelando na hora de falar
quando o que mais precisamos fazer é escutar.
Escutar Marielle
Escutar Djamila
Escutar Leandra
É só escutar!