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Categoria: Vida Imaginária

O reflexo de um homem

Existia um rosto pintado no reflexo do espelho, uma pele branca com traços leves, sobrancelhas azuis e um preciso nariz vermelho. Na intimidade do reflexo seus olhos se cruzaram e pelo vácuo de milésimos de segundos ele era apenas um homem que não se reconhecia.

O estranhamento de ver seu rosto tomado por uma substância branca a qual ele não era familiarizado. Nada ali era próxima da sua realidade, parecia ter acordado em um sonho, antes de acordar de fato.

Tomado pelo milagre do tempo, ele parou, e parado ele se mantinha com o olhar vago para aquela imagem refletida.

Quando um palhaço deixa de ser um palhaço?

Pra onde vai o palhaço quando ele não é mais um palhaço?

O que ele faz?

Ele existe?

O tempo se passa e o palhaço sobrepõe novamente o homem, desenha uma gota em seu olho direito, levanta-se fugindo do espalho e sai em direção à lona.

Ouve-se aplausos e risos.

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Vida Imaginária *

Xavier Dolan
Havia chegado à França naquele mesmo dia, deixei as malas na república que logo se tornaria meu lar. Após a socialização com os outros moradores resolvi dar uma volta pela cidade. Era outono em Paris, o vento soprava forte, fazendo com que as flautas doces na mão das crianças parecessem tocar sozinhas.
Andava sem pretensão alguma, andava valorizando o sonho tão desejado que se tornara realidade. Após quase uma hora e meia de caminhada com o vento cortante batendo no rosto, resolvi parar naquele charmoso café na Rue St Honoré. Sentei-me sozinho, pedi um Tarte Tartin e um expresso gourmet. Degustava-me com a sensação de liberdade que nunca foi minha. Respirava aquele aroma com um sorriso leve de criança a me tomar os lábios. Olhei para lado.
No fundo do café uma mesa agitada, aquela língua rápida e afiada que eu pouco conhecia. Definitivamente eu estava na Europa, o falar agitado com as mãos, as gargalhadas sonoras, os goles de café e o cigarro a descansar no cinzeiro. Tomei coragem, a coragem de um viajante sem passado e sem futuro. Fui até a mesa. Todos ali pareciam ter a minha idade e perceberam a minha chegada, não demorou muito e aquela levantada de cabeça revelará um rosto familiar.
Demorei a me lembrar de onde conhecia aqueles olhos, aqueles lábios, a curva daquele pescoço. De repente como num baque surdo me percebo na frente de Xavier Dolan e seus amigos. Fico ligeiramente sem palavras. Acabo por emitir um sonoro “Sorry!”. Ele sorri do meu jeito desajeitado e eu sem perceber sorriu, respondendo aquele gesto. Disse que o conhecia que adorava seu cinema e seu jeito de ver as coisas. Compartilhava de algumas fotografias que ele valoriza em seus trabalhos. Ele sorriu novamente e o “merci” tomou conta de meus ouvidos. Disse até logo e voltei ao meu lugar, tomei um gole tão grande de café que senti meu tórax queimando por dentro. Enquanto disfarça a dor que o café quente me proporcionará senti um leve toque no meu braço. Era ele. Sorrindo novamente, me informou de uma festa que fariam mais tarde, me passou o endereço e anotou meu telefone. Fiquei sem jeito, pois não conhecia ninguém, ele colocou a mão nas minhas costas me deu um beijo em cada bochecha e disse ao pé do meu ouvido “vous me connaissez”.

Naquela noite, perdido em meu primeiro dia em Paris, me vesti com meu jeito brasileiro de ser e fui a tal festa. 

* O título “Vida Imaginária” faz referência aos devaneios internéticos de René Piazentin e ao filme “Amores Imaginários” de Xavier Dolan.

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