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Autor: Leco Vilela

Mudança

Pôr do Sol em Porto Alegre
De uma forma ou de outra sempre buscamos a normalidade, o equilíbrio. Não uso o normal como antítese de diferente; entendo que mesmo nas diferenças existe o padrão de normalidade desejada, mas penso em como essa busca utópica nos afeta.

Não sei o motivo social ou antropológico dessa busca, talvez se assemelhe com o sentido da vida. A verdade é que nos bombardeiam com imagens e sons da felicidade ideal, nos ensinam que não somos como os outros animais porque pensamos, mas para mim nossa única vitória é termos a sorte de ter nascido com um polegar opositor.

Lembro que quando criança eu dizia ser um mutante, diferente de todos, oposto ao desejado. Esse sentimento de negação do próprio ser talvez seja a sensação menos compreendida por um adulto. Os grandes parecem não se lembrar de quando eram crianças e não queriam a própria história e sim outra qualquer.

Um humano adulto deveria poder reescrever sua própria história, mudar caso necessário ou desejado. É justamente este o “super poder” que toda criança secretamente deseja do adulto, poder mudar a própria realidade.

Mas fazer o que, se vivemos num mundo que abomina a dor? Que ao invés de aprender com esta força, simplesmente a ignora. Nem mesmo o mertiolate dói mais. Somos filhos de país carentes, filhos de uma nação desamparada, filhos do silêncio e do medo. Libertaram-nos das algemas, mas não nos disseram como andar.

Um elefante criado em cativeiro não precisa de cerca quando adulto.

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Maria

Maria tinha seus vinte e tantos anos, ela era esperta, descolada e andava livre pela rua. Seus óculos escuros lhe davam um ar descompromissada, quase que coloquial. Caminhava pela feira de artesanato em um domingo ensolarado.
Seu corpo com algumas tatuagens, vestia um shorts curto ao melhor estilo, foda-se você. Maria procurava algo entre as barracas, queria um presente, mas não tinha muito dinheiro para comprar, gastará boa parte com álcool e comida.
Ela era fotografa e tinha os olhos acostumados a uma beleza grega, púbere, embora o que gostasse mesmo era um corpo marcado, colorido e confortável. Queria o diferente e com isso era indiferente às investidas de seus ou suas modelos.  Maria era bonita em seu jeito, charmosa e um pouco tímida para começar uma conversa, mas se soltava fácil, isso era verdade.
Outra coisa importante a se dizer sobre Maria é que ela era virgem não praticante e, além disso, acreditava em sexo no primeiro encontro. Afinal gozar a vida era preciso e algumas pessoas simplesmente não voltam.
Mas voltando a feira de artesanato, lá estava Maria, caminhando quando viu um ciclista pedalando em sua direção. Estranhou e pensou se de fato era na direção dela que o ciclista corria, sim era. Teve medo de ser atropela, mas no mesmo momento viu quem pedalava, era um homem lindo, seu tipo, seu número.
O ciclista se aproximava em zoom e a cada quadro Maria o desejava mais, penso em sair da frente para não ser atropelada, mas sua única reação foi abrir as pernas. Ele freou ali, com as rodas entre suas pernas e a cabeça inclinada para a sua boca, ele sorrio.
Maria, a esperta e a descolada que andava livre pela rua, pensou que talvez fosse uma boa hora para tirar o Santo Antônio do copo d’água.
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Cartola


foto Isaias Mattos
Ainda é cedo, e da janela vejo o horizonte contornando os prédios e os morros da cidade. Penso que mal conheço a vida e já sai por aí sem ao menos saber o rumo que irei tomar.

Presto atenção, mesmo sabendo que estou resolvido, pois em cada esquina é possível se perder. Talvez seja a forma desse mundo moinho me mostrar que sonhos só se transformam em realidade após muita luta, caso ao contrário essas ilusões são reduzidas a pó.

Só espero não deixar de crer no amor, pois com o tempo só se herda o cinismo, até que se percebe em um abismo, que cavastes com os próprios pés. 

*Um tributo a Cartola.

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Curvas

Às vezes sentado na sala escura me pego a pensar na estrada. De como é bonito ver o sol colorir as nuvens e como é bom se deixar levar pelas curvas sinuosas do asfalto. O verde que corre de costas pelo vidro do carro, a mão que brinca de peixe no vento, a cabeça que vai e volta em inúmeros pensamentos e aquele sono gostoso que pesa os olhos e alivia os ombros.

Anseio pela viagem e pelo desconhecido. Acho incrível a capacidade de algumas pessoas de saírem de suas casas com uma mochila, um bom sapato e muita coragem. Não vejo esse tipo de viajante em mim. Nunca foi de acampar ou de pegar caronas na estrada, mas isso não diminui o valor do caminho.

Muitos falam que a estrada é solitária, li isso em muitos livros também, mas a verdade é que a estrada recebe a todos que nela pisam. Claro que receber não é zelar, a estrada não pode se preocupar com o suor da sua testa ou o calo do seu pé. Nela você aprende mais sobre você, não só limites, mas também sentimentos e dor.

Nós passamos muito tempo fugindo da dor, nos dopamos na esperança que ela desapareça, mas no fim das contas, ela continua lá, a gente que vai aprendendo a ignorar. Dizem que isso faz de você alguém mais forte. Eu ainda acho que forte é quem encara a dor nos olhos, resolve as coisas e sai andando. Sei que isso pode ser mal interpretado e encarado como falta de educação, mas pense bem, educação de quem? Quem te ensinou a ignorar a dor?

A estrada não é feita de caminhos fáceis, talvez por isso ela me fascina tanto. Afinal nunca fui normal e sinceramente, nesse meu quarto de século, considero isso um elogio.

Qual o propósito da estrada? Ela é uma imagem densa, sem dúvida, um signo forte de liberdade, força e rompimento.  É como a esfinge de Tebas, é necessário decifrar ou se deixar devorar.

A estrada não se trata de uma fuga, se trata de um adeus.

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O manifesto da cidade grande


Eu vivo em uma época que o macho luta pela sobrevivência de seus antepassados e não por sua própria sobrevivência. Vivo numa mistura louca e incansável das décadas de 60, 70, 80 e 90. Todo mundo anda, mas ninguém sabe aonde vai. As coisas já eram confusas antes, agora isso é só um apelido. Os adultos não se encaixam nas novas posturas sociais, os jovens criticam o mundo como aquele velho rabugento do apartamento X, as crianças, em sua maioria, vivem cercadas de campos eletromagnéticos e tem a absoluta certeza de que o bom velinho é um pedófilo que só quer se aproveitar do seu pequeno corpinho.
Eu não sei onde eu vivo.                                                             Eu sei que hoje não é presente.
Ando pela rua tentando fugir da velocidade sufocante dessa porra de cidade. Na maioria das vezes acabo pisoteado por pessoas fantasiadas de testemunhas de Jeová. Sempre me perguntei o que será que eles viram de tão grave para se prenderem em cintos e gravatas. Caminho e sou atropelado por carros, motos, pessoas, velhas, bebês, pássaros-ratos. Sufoco.
A bondade foi precificada em dízimos.
Esse texto parece o anseio de uma fuga, uma reinversão de valores e então gritar fujam para as montanhas me parece algo sensato. Respiro com dificuldade. Caralho. Até para respirar bem eu tenho que pagar. Minha indignação é sufocada por ruídos, ruídos reverberados pelas estruturas com mais de três andares, estruturas que deceparam visão da cidade, visão que falta a todos.
                   Quem foi que botou a chuva nos meus olhos?
Não é de hoje que pais de família vão para rua em busca de uma rola imensa, em busca de um travesti ativo, em busca de uma prostituta altiva, em busca de um copo de pinga. Em busca de algo que em algum lugar, escrito há milênios atrás, reescrito por milhares de pessoas, reinventado de acordo com os mais diversos interesses. Algo que é proibido, que é doce, que é quente e que desce com dificuldade pela garganta.
Proparoxítona                                        Cinco silabas                                                Desilusão.
*Texto escrito após a leitura do primeiro parágrafo de um livro e ao som de um dos álbuns da banda Best Coast.
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