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Categoria: Crônica

Uma linda mulher

Seus olhos claros e límpidos a destacavam na turva realidade do dia-a-dia. Ela costumava sorrir a quem lhe cruzasse o caminho, de alguma forma sentia que ajudava quando fazia isso.
Não estava de toda errada, afinal ao ver o quadro perfeito que envolve seu sorriso e acentua seu olhar singular homens e mulheres pareciam receber o toque de um anjo.
Ela era assim, amável, carinhosa, e por que não angelical? Mas assim como Terezinha, não demorou muito e foi ao chão, de anjo passou a demônio, de menina do vestido branco virou Geni. Aqueles olhos que antes lhe agradeciam sorrindo hoje a repudiavam em carrancas.
E a origem desse ódio desmedido e dessa raiva inconsciente era uma simples vírgula que ocupava o lugar do traço. Ela não havia mudado e mesmo assim ouvia em coro termos xulos ao passar na rua, eles é que haviam mudado.
Nada mais de sorrisos e nada mais de olhares, somente uma ira ancestral que culminou na morte por apedrejamento da bela moça, aquela que morreu por conta de uma vírgula, de um simples erro gramatical.
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Vitrola

Eu por Regina Vilela

Cresci entre sons opostos e paisagens diversas, enquanto numa vitrola Joplin cantava as injustiças de uma vida, na outra o lamento do fado de minha avó tocava. Nem dois passos eu dava e lá estava os acordes de uma guitarra a se misturar com o som da cuíca.


Lembro de olhar entre as grades brancas do portão enferrujado a bateria da Nenê  que descia aos domingos. Recordo ainda do cheiro de peru, da letria na mesa de natal, da calda que escorria do manjar e do bordo do vinho a contornar a taça em movimento.


Recordo da água com açúcar, do beija-flor, das violetas, da hortelã que nascia ao pé do limoeiro e do barulho da máquina fotográfica mudando o frame.


Foi exatamente toda essa oposição, toda essa lacuna, que me fez assim, meio passado / meio futuro.

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Pedra, Papel e Tesoura

Eu por Regina Vilela

Abri os olhos, o ar entrou em meu pulmão, expandindo minha caixa torácica me dando uma sensação de rompimento forte, chorei. Desde que com a garganta narrei minha primeira dor, como quem já soubesse o caminho cortei o cordão que nos ligava instintivamente. Cresci e com isso vieram as mudanças, e com elas mais cortes em cordões que me ligavam a grande árvore da minha história.
De repente, o processo virou hábito, cortava sem ao menos perguntar por que, sem necessidade de um motivo, cortava como se aquele fosse um movimento de inércia que nunca findava, me sentia como Eduard com suas lâminas afiadas e frias. A cada corte um galho caia, uma história se ia, uma lembrança partia.
Foi cortando impetuosamente minhas linhas e meus cordões que me vi pelado em meio a floresta que se fazia noite ao meu lado. Ao redor os restos de uma história em cacos. Quando dei por mim o quebra cabeça estava feita aos meus pés.
Minha cabeça em silêncio gritava: “Aquele que sempre soube usar a tesoura, agora terá que aprender a usar a cola”.

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Domingo

Neste domingo eu acordei mais cedo, um horário normal para os dias da semana que correm, mas cedo para um domingo quieto.

Sentei no sofá e como de costume, tomei meu café agarrado nas minhas próprias pernas, como um contorcionista a brincar de nó humano, salvo as devidas proporções, é claro! 

Café tomado, eu precisava sair do meu nó, a inquietude pairava sobre mim e me mostrava a rua, eu precisava ver a rua, ver o céu além da estrutura da janela de minha sala.

Troquei-me de pressa como de um salto, desci o elevador e peguei minha bicicleta em meio aos motores sedentos de petróleo. Sai pedalando forte pela rua vazia de uma São Paulo que ainda dormia. O vento forte vinha de encontro ao meu peito me causando arrepio e me deixando vivo.

Andei, corri e até voei. E nesse devaneio real, cheguei ao parque, passei entre ciclistas e pedestres, ouvi um jazz bem tocado, deitei na grama ensolarada e cochilei deitado entre folhas caídas de outono. Tirei fotos com os pássaros e pensei, pensei nessa vida que corre pelas ruas de São Paulo.

Vivi até chegar à hora de mais um ensaio. Sai de um sonho findado em realidade para a realidade de fazer sonhos. E no fim das contas, era só mais um domingo.
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Sinto…

Foto: Leco Vilela / Edição: Camila Stella
Sinto falta de um país singelo, sem medo e com zelo pela alma alheia. Sinto falta dos bons tempos de menino, onde o pique era um poste e não blindagem para te proteger dos inimigos.
Sinto falta de acordar ao som de pássaros no pé da minha janela, sinto falta de sentir a respiração do vento, de ouvir a árvore falar. Sinto falta das sutilezas, dos detalhes, do tempo.
Saudosismo que não é só meu, que vejo em vários cantos e ouço em outros cantos. Esse jeito de viver a vida assim calado, amado, mesmo que por si, é um jeito nostálgico de querer de volta a vida que me foi roubada, é do sútil que tenho falta.
Daquele sorriso faltando um dente de leite, do cheiro de bolo a gritar no forno, sinto falta não da minha juventude, nem dos meus tempos de menino, sinto falta é das crianças que enxergam vilas em caixas de sapato.
Parece que de um jeito torto o mundo perdeu o posto, perdeu respeito, perdeu amor. Parece que no fundo do mundo só a lava e não outro mundo, como há tempos atrás se dizia. Parece que tudo perdeu a magia. E aquele menino mirrado, que mesmo apanhando continuava a conversar com a sua árvore, ficou esquecido e empoeirado nas estantes do tempo.
Sinto. Por isso escrevo este manifesto de peito aberto, pela retomada do simples afeto, pela volta de algo simplesmente belo, por algo simples e não complexo.
Foto: Leco Vilela / Edição: Camila Stella
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