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Categoria: Vida

Cega

E sem poder ver as horas, ela as tocou. Seus dedos acariciavam os ponteiros do relógio em seu pulso.
Era nove e vinte da manhã e o dia mal tinha começado. Ela caminhava com sua bengala tocando suavemente o chão.  Sonar de um morcego tão negro quanto seus cabelos.
Seu olhar branco mirava o nada, imenso vazio sem cor. E, no entanto, era como se enxergasse o mundo, janelas da alma aberta.
Cegueira branca é de quem vê e não encara o mundo olhos nos olhos.
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Vitrola

Eu por Regina Vilela

Cresci entre sons opostos e paisagens diversas, enquanto numa vitrola Joplin cantava as injustiças de uma vida, na outra o lamento do fado de minha avó tocava. Nem dois passos eu dava e lá estava os acordes de uma guitarra a se misturar com o som da cuíca.


Lembro de olhar entre as grades brancas do portão enferrujado a bateria da Nenê  que descia aos domingos. Recordo ainda do cheiro de peru, da letria na mesa de natal, da calda que escorria do manjar e do bordo do vinho a contornar a taça em movimento.


Recordo da água com açúcar, do beija-flor, das violetas, da hortelã que nascia ao pé do limoeiro e do barulho da máquina fotográfica mudando o frame.


Foi exatamente toda essa oposição, toda essa lacuna, que me fez assim, meio passado / meio futuro.

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Pedra, Papel e Tesoura

Eu por Regina Vilela

Abri os olhos, o ar entrou em meu pulmão, expandindo minha caixa torácica me dando uma sensação de rompimento forte, chorei. Desde que com a garganta narrei minha primeira dor, como quem já soubesse o caminho cortei o cordão que nos ligava instintivamente. Cresci e com isso vieram as mudanças, e com elas mais cortes em cordões que me ligavam a grande árvore da minha história.
De repente, o processo virou hábito, cortava sem ao menos perguntar por que, sem necessidade de um motivo, cortava como se aquele fosse um movimento de inércia que nunca findava, me sentia como Eduard com suas lâminas afiadas e frias. A cada corte um galho caia, uma história se ia, uma lembrança partia.
Foi cortando impetuosamente minhas linhas e meus cordões que me vi pelado em meio a floresta que se fazia noite ao meu lado. Ao redor os restos de uma história em cacos. Quando dei por mim o quebra cabeça estava feita aos meus pés.
Minha cabeça em silêncio gritava: “Aquele que sempre soube usar a tesoura, agora terá que aprender a usar a cola”.

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Domingo

Neste domingo eu acordei mais cedo, um horário normal para os dias da semana que correm, mas cedo para um domingo quieto.

Sentei no sofá e como de costume, tomei meu café agarrado nas minhas próprias pernas, como um contorcionista a brincar de nó humano, salvo as devidas proporções, é claro! 

Café tomado, eu precisava sair do meu nó, a inquietude pairava sobre mim e me mostrava a rua, eu precisava ver a rua, ver o céu além da estrutura da janela de minha sala.

Troquei-me de pressa como de um salto, desci o elevador e peguei minha bicicleta em meio aos motores sedentos de petróleo. Sai pedalando forte pela rua vazia de uma São Paulo que ainda dormia. O vento forte vinha de encontro ao meu peito me causando arrepio e me deixando vivo.

Andei, corri e até voei. E nesse devaneio real, cheguei ao parque, passei entre ciclistas e pedestres, ouvi um jazz bem tocado, deitei na grama ensolarada e cochilei deitado entre folhas caídas de outono. Tirei fotos com os pássaros e pensei, pensei nessa vida que corre pelas ruas de São Paulo.

Vivi até chegar à hora de mais um ensaio. Sai de um sonho findado em realidade para a realidade de fazer sonhos. E no fim das contas, era só mais um domingo.
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De repente 23!

Recado que minha mãe deixou hoje na parede da sala.

De repente acordo e as figuras na parede a brincar de hieróglifos me fazem perceber a idade que chega. Hoje são 23 verões, 23 verões de existência, 23 verões de fortes batalhas vencidas e perdidas… 23 anos.

Parece engraçado dizer isso, afinal eu era um recém nascido, mas eu lembro da música de tocava enquanto eu nascia. Não me lembro dessa maneira ocidental de reviver a situação mentalmente. Eu lembro dela pelos meus poros e meus tímpanos, lembro dela com cada parte do meu corpo. E eu sei que lembro mesmo de forma tão abstrata, pois meu corpo vaza e transborda em emoção toda a vez que eu escuto a voz de John Lennon pedindo por um mundo melhor.

Para quem me conhece sabe ou consegue perceber que de fato nasci ao som dessa música, dessa canção que não só marca a minha personalidade, como marca minha trajetória, vida de marcas. E eu sei que vocês podem dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único. Eu tenho a esperança de que um dia vocês se juntarão a nós, os sonhadores. E o mundo, o mundo será como um só.

Por que imaginar um mundo melhor não basta mais, é necessário fazer seu mundo melhor a cada dia e perceber que ao menos na imaginação não existe posse.

Hoje comemoro o meu ano novo pessoal, a minha virada, o meu ano um. Hoje renasço e me permito ser e imaginar tudo aquilo que quero e posso.

Namastê.

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